Fédon | comentário ao prólogo e ao primeiro capítulo (I)
Fédon, nome de um discípulo de Sócrates que intitula esta obra, começa em casa de Equécrates onde ele mesmo se dispõe a contar o sucedido a Sócrates no cárcere, pouco tempo antes de ser executado. Assim, inicia o seu relato, expondo a razão que levou Sócrates a esperar algum tempo pela morte. Ele conta que o seu mestre foi condenado um dia após uma nau ter partido para Delos a fim de agradecer uma antiga vitória mítica de Teseu, filho do governador de Atenas, sobre o Minotauro. Deste modo, só poderia ser executado quando a nau voltasse a Atenas, o que tendia a levar duas semanas (“Logo que começa a romagem, é lei entre os atenienses que, durante este tempo, não se manche a cidade, nem seja executado nenhum criminoso pelo estado, até que a nau chegue a Delos e regresse ao ponto de partida”).
Ora, durante este tempo de espera pela morte, Sócrates fala com os seus discípulos sobre os temas já acima referidos. Mas não só. Dedica-se também à literatura, pondo em verso fábulas de Esopo e escrevendo um hino a Apólo, causa de cerca de mais duas semanas de vida. E são estes seus trabalhos que possibilitam a introdução ao tema que por sua vez inicia todo o resto da obra: “Como o filósofo encara a morte?”. Isto sucede quando no prólogo, Cebes, discípulo de Sócrates, dá a conhecer ao seu mestre que muitos se admiravam com a sua súbita e estranha dedicação à escrita, inclusive Eveno, poeta e sofista de Paros. Sócrates mandou que lhe respondesse que não tinha sido para rivalizar com ele que escrevera mas por causa de certos sonhos que tivera e que se era realmente sábio que o seguisse (“...me siga o mais breve possível”). Neste ponto, e à primeira vista, Sócrates dá a entender que Eveno deveria morrer , mesmo que para isso tivesse que recorrer ao suicídio. No entanto, ele não encara a morte como um fim*, mas como “Katharsis” ou, em português, catarse, purificação. Pela boca do seu mestre Sócrates, Platão começa então por apresentar o suicídio como uma impiedade para com aquele que põe fim à própria vida. Assim, quem se suicidar estará a procurar beneficiar-se. Aliás, não estaria a beneficiar-se mas a iludir-se neste aspecto, porque a morte é um lento processo de libertação e consequente purificação que culminando com a morte corporal não significa que o suicídio antecipe o ultimo estagio da catarse.
Por isso, Platão recorre ao contexto orfico-pitagórico, em que se encontra, para reforçar esta sua teoria do suicídio. Este contexto religioso baseia-se no orfismo e no pitagorismo que têm pontos comuns como a crença na imortalidade da alma e na Metempsicose, Metensomatose ou Transmigração (reencarnação das almas) que se apoiam no principio de que o corpo (SOMA) é a prisão (SEMA) da alma (PSIQUÉ) e que o conhecimento e/ou busca da sabedoria é a “Katharsis” da “Psiqué” que culmina com a morte (separação da alma e do corpo). Deste modo, defende que somos pertença dos deuses e que eles velam por nós; são eles que decidem quando partimos para junto deles (para o Hades) e não nós que não nos pertencemos. É assim que Platão se desvia do uso da razão, pela boca de Sócrates, que também naquele dia de cárcere, último da sua vida, recorria muito às crenças religiosas. Mas Cebes nota essa sua lacuna, especialmente por algumas das suas expressões e ainda, em primeiro lugar, pelo que ele pensa ser um paradoxo quando Sócrates diz que o filosofo, o verdadeiro filosofo, deve desejar a morte para alcançar a sabedoria e que só devemos partir deste mundo (só devemos querer partir) quando os deuses assim o entenderem. As referidas expressões são uma constante da influência religiosa, como: “nutro a esperança”; “não o posso garantir”; “doce esperança de que existe”; ... É portanto, com este cenário, que Platão inicia o tema: “Como o verdadeiro filosofo deve encarar a morte”.
Para compreendermos na perfeição a teoria platónica, teremos primeiro que fazer um pequeno resumo explicativo acerca dos seuu conteúdos. Para Platão existem dois mundos completamente distintos mas em que um é dependente do outro. Se não, vejamos: um dos mundos é o Inteligível ou das Ideias perfeitas (“eide”) onde as Ideias estão no seu estado puro, por si e em si, na sua essência. São elas, por exemplo, a Ideia de Justiça e Beleza, a par de uma outra que a todas preside, a Ideia de Bem. O outro mundo é o Sensível, ou Material, onde se encontra a matéria, nós: é o nosso mundo. Mas este não é totalmente independente do primeiro.
*contrariamente aos atomistas
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