19.1.09

Utopias e ideologias

Uma das coisas que mais me diverte fazer é, em situações de conversa sobre política e quando oiço alguém lamentar-se do estado do país, tentar explicar que o regime está estruturado para o saque, nada havendo a esperar de melhorias no contexto actual. No fundo trata-se colocar as pessoas perante as suas incoerências, porque considero essencial que se definam politicamente, não sendo possível lamentar o descalabro do país sem questionar tudo aquilo que o possibilitou. Ainda recentemente falando com uma pessoa lhe dizia que, contrariamente à versão oficial, ditadura temos nós hoje na medida em que temos um regime no qual o poder é exercido em benefício próprio sendo fruto do nosso trabalho é transferido para os amigalhaços do poder por intermédio das derrapagens nos custos de obras públicas, estudos de consultadoria encomendadas a empresas de amigos, entre outros exemplos. Passado algum tempo essa mesma pessoa vem ter comigo e diz-me que eu não podia ser assim tão saudosista porque apesar da corrupção e todos esses aspectos lamentáveis que eu lhe tinha referido, eu não podia negar todo o imenso progresso que, segundo ele, tem havido. Ao que eu lhe retorqui que o modelo de crescimento adoptado é insustentável visto que o país está cada vez mais endividado, isto já para não falar de toda a profunda degradação moral e “desportugalização” que tem sofrido. O interessante em tudo isto é assistir à “luta” entre a ideologia (e a utopia que lhe está associada) e a realidade na mente de muito boa gente, sobretudo daqueles com maior formação académica, e que, por isso, foram mais submetidos à “formatação ideológica” que o ensino faculta. No caso de ser a ideologia a “ganhar” na sua mente a pessoa em questão tende a recusar o real, evitando a partir daí conversar sobre política e deixando de se lamentar sobre a situação do país, numa autêntica demonstração de autocensura, naquilo a que gosto de chamar “fenómeno anémona”, na medida em que a pessoa se fecha sobre si própria. A propósito disto lembro-me de uma passagem que li num livro de Jean-François Revel, “Le regain démocratique” (1992), num capítulo sobre as utopias, intitulado precisamente “Comment finissent les utopies” e onde se pode ler o seguinte:
“As utopias resultam da capacidade humana em projectar sobre o real construções mentais activas que podem resistir muito tempos às evidências, manterem-se cegas às catástrofes que provocam, mas que acabam por se dissipar sob a convergência do falhanço objectivo e do desgaste subjectivo. Mas o mistério é que o desgaste subjectivo, a perda de ilusões ideológicas, não é apenas a consequência directa ou imediata do falhanço objectivo. Ele pode sobreviver por muito tempo.”
Daí a persistência de um subconsciente marxista em muito boa gente, mesmo em pessoas que se consideram de direita. Esta capacidade de projectar “construções mentais” sobre o real resulta da necessidade que os homens têm de criar modelos para prever a realidade, isentando-se assim de responsabilidades. É por isso que creio que, no caso português, o “preço a pagar” para "a perda de ilusões ideológicas”, será o da bancarrota, algo que, tendo em conta o evoluir das finanças públicas nos últimos anos e o endividamento galopante do país, nada tem de surrealista. Acompanhemos então as cenas dos próximos capítulos.

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